Por Mário Marques da Cruz

Meu caro José Adelino Vieira Brites,

Li este teu último livro e ouso falar dele, já que confiaste em mim para o apresentar.

Por ser a visão tua sobre ti mesmo de nada valem as palavras que vou proferir. Aceitá-las-ás modestamente... à tua maneira, eu sei.

Falas dum zé, pondo-te a coberto dos juízos que dele faremos. Mas ele és tu, até porque o tratas tão mal. Impiedoso ao princípio, vai-lo compreendendo... e nós a ti...

Zé: a Isabel leu, Tirso de Molina. Reconhecerás assim mesmo que a tua literatura não é da igualha da daquele frade do Séc. XVII. Fica, reconhecemos todos, aquém, na eloquência da adjectivação; distante na erudição das evocações. 

Tem contudo outro valor, a tua escrita, repara tu: excede-a na fraternidade com que facilmente nos conquistas. Na humildade dos sentimentos com que queremos identificar-nos. Esta sim: é de ouro de mil quilates a singeleza e frontalidade de que ela se reveste. A tua escrita é espontânea e muito, muito fraterna. Além do mais, Tirso negou o próprio nome, enquanto tu o exibes tão garbosamente – “o Zé”! Aquele erudito negou também a paternidade, e aí, Zé Adelino... eu vejo confirmado neste livro o que já sabia: os teus Pais são os teus primeiros e principais heróis! Eu sei... ainda hoje!...

Para nós é cómodo: só de vez em quando caímos no Zé Brites. No resto... é um Zé ninguém. É o Zé português. É o Zé daquela época... que afinal reagia e tinha sentimentos...  Mas vamos crescentemente acolitá-lo nas suas aventuras e acabarmos por admirá-lo no seu exemplar espírito de sacrifício e rejubilar com ele nas boas ocasiões. Correste a tua vida de trás para a frente. És um maratonista... que não acabará cansado tão pouco... Não se fica indiferente a esta corrida que foi a tua vida. Até queremos correr ao teu lado este pedaço grande que te restará ainda.

Ah, o livro! Oito vértices, poucas páginas...

E chocamo-nos! Quem está em contramão? Pois basta termos presente esta poesia do aflito Álvaro de Campos:

Onde é que há gente neste mundo, pergunta o poeta angustiado!...

E hoje, respondo: em tua casa! Satisfá-lo, Zé, a esse angustiado Álvaro de Campo e diz-lhe que aí só havia ”gente ordinária”... na boca do teu saudoso Pai! Desassossega esse Fernando Pessoa, aflito desde a década de 30... nem todos são semi-deuses! Onde é que há gente neste mundo? em tua casa! Tu e os teus : Gente de verdade, que sofreu enxovalho e foi vil no sentido mesquinho e infame da vileza. E além de ti havia naquela casa mais gente! O Afonso a pedir o terço e a Ti Teresa a esticar as magras batatas (que ainda partilhava às 4 de cada vez!) para vos minorar a fome. Porque aquela casa existiu, existes tu inteirinho... que a descreves tão candidamente, mergulhado em recordações tão sublimes e poéticas...  mesmo imersos que estavam em dívidas, em trabalho duro, em dificuldades. Nela se revelaram os teus Pais – os teus heróis de sempre... e os teus irmãos, contra a vontade de quem tu nos contas com tanta graça que nasceste... tu e os teus... gente de verdade que sofreu enxovalho e foi vil e que por isso foi inoculada de fraternidade, de humildade, do dom do perdão e da misericórdia – uma fortuna mais herdada da tua Mãe e que te traz em paz com a tua consciência que a sugere e com a tua inteligência que a exige. E assim, podes confessá-lo, em nome da verdade dum retrato factual daquela aldeia e daquela época...

O livro, o livro! Capas pretas, sem badanas...

Vamos então à infância e descalço-me para ir contigo à Escola. Vou acompanhar-te no teu deslumbre por esse teu primeiro espaço exterior à casa, nessa primeira experiência de “alforria”. Vou ajudar-te a reprovares na 3ª classe e em compensação tu ensinas-me dos ninhos... (ninguém reprova, Zé – são todos os “maiores”!)

O homem é um ser eminentemente social e tu és disso o paradigma acabado. As pessoas com quem interages vão ser o móbil da tua vida de humanista dos 4 costados. Os teus colegas são esse teu primeiro mundo novo e se eles têm sapatos, tu tens a Ti Teresa que te cura os esgrumeiros dos pés com azeite quente da candeia... mas agora Zé, vamos aproveitar a natureza, pródiga, sempre mais para os que a merecem: enchemos o teu farnel de trevo azedo, de pútegas, maçãs azedas e figos do mato – tenho água na boca!

O livro! faz outro... de seguida, pá!

Ah, sim!... Sucedem-se os episódios mais e menos pitorescos daquela juventude pobre e vivida intensamente. As festas fictícias que encenavam com padre, banda e tudo... os casamentos e as amêndoas rijamente disputadas e... surge a poesia. E logo com “a fonte” sobre quem poderás e deverás exercer a posse plena. Invoca pois a usucapião pelo espírito já que pensas nela a toda a hora...: - é tua a fonte! Porque dela cantas as sofredoras mães que à cabeça levavam a frescura, a higiene, a água da escassa sopa e as preocupações para o jantar. Para ti, a fonte é... o brotar de muito mais que aquele córrego de água e de mistérios. É o local de encontro de ânsias, de desespero, mas também da remissão do espírito e do corpo,  e de encontros felizes de namoricos... e acima de tudo foi, a fonte, uma musa mais da tua poesia – essa que é a tua companheira mais antiga e também sempre fiel, confidente, refrigério quantas vezes do sofrimento e da desesperança.

O livro!... 96 páginas!...

Mas ainda bem que surge a poesia... que tu a quiseste para a tua vida...

O mercado dos homens vem a terreiro. Poupas-nos palavras vãs, mas não nos poupas à revolta a que aderimos num abraço em que te envolvemos na tentativa de ajudarmos os menos capazes e que ficaram de fora nas preferências dos empregadores... sem emprego, sem jorna... mas que tinham igual amor pelos filhos a quem também não podiam valer. Tu ficaste chocado, Zé! Imaginamos como se te apertou o coração ao constatá-lo. Mas... obrigado por essa pincelada mais desse retrato de época, aí salpicada da fria e escura côr da desumanidade daqueles tempos... hoje até já largamente ultrapassada por mais ferozes iniquidades e crueldades...

Mas a tua espontaneidade atinge níveis de verdadeiro literata quando nos manifestas com tanta graça que “a gordura e os sapatos não pesavam” e as atopadas eram eficazmente curadas com macheias de terra ou teias de aranha. Deixo mais um cumprimento e afectuoso abraço por esse teu desassombro e apetece-me gritar aos médicos de hoje que chegaram tarde e que afinal são eles a medicina alternativa. Querem remédio mais eficaz? Mais ecológico ? Teias de aranha: abundantes, geométricas, sem iva... nem princípio activo!...            Sucede-se poesia, agricultura, a confissão e a hóstia saborosa e estás caído... nos amigos. Os verdadeiros, chamas-lhes. Mas nem havia outros: teu primo Luis, primo Joaquim e irmão António... amizade vivida sem interrupções nem mesmo quando se apoderava de ti uma confessada inveja por não teres tais roupas e tais sapatos... aquelas alegres cumplicidades tudo compensavam e os amigos são em ti, inexcedíveis... todos! É o que ressalta do teu livro... das verdades nele contidas...

Neste livro, uma seta vermelha... muitas setas...

Lá dentro as estrelas, os bagoixos, os dias do bolinho, num retrato sociológico fidedigno, circunstanciado porque muito bem ilustrado – basta o coração - e realista porque cheio de emoção, claramente notória... por exemplo nas mulheres do dia do bolinho, que nos apresentas confinadas às varandas de que não desciam os degraus, vinculadas que estavam às tarefas da cozinha, na multiplicação da farinha mesmo antes da dos pães, da roupa, do espírito em infindáveis rezas... então aproveitavam aquele dia para contactarem as crianças da aldeia e assim se renovarem naqueles sorrisos, maroteiras e novidades sobre os seus pais... e atrevo-me a falar de literatura para enfatizar um belíssimo momento mais da tua auto-biografia: versejas sobre o Soutocico na década de 50 e nas carências, essas sim à farta. Cativam-nos o teor do verso. A métrica ritma-nos o pulso e os sentimentos... a rima embala-nos... e de repente, daquele ambiente lúgubre ressurge a tua juventude e o teu sangue a correr nas veias e feres-nos: “indiferentes à miséria existente, Zé e seu primo Luís percorrem todos os poços que havia em redor, à procura de caracóis e de ninhos de toutinegra”.  Meu caro: Redol e Pereira Gomes não fizeram melhor. A literatura tua, atinge neste contraste um clímax mais da sua expressividade. E foi-te fácil fazê-lo: bastou admitir que a tua vida continuava, e essa era a de aproveitar a natureza pródiga, para quem a merecia: o Soutocico vivia na escravidão e “com banha rançosa nas salgadeiras”,mas a tua vida sentia o apelo também das toutinegras e... como te ensinou o Afonso teu saudoso pai: “o tempo não se espera em casa!” e tu brindas-nos com essa literatura à maneira dos neo-realistas, também eles irmanados contigo na denúncia desabrida da condição social.

Este livro... perscruta e escrutina a tua alma e tu, apaziguado, aceitas-lhe o veredicto... contracapa!...

Manténs o teu sorriso de garoto e se calhar essa inocência. Juraria que ainda hoje confessarias de manhã um pecado para o repetires na tarde desse mesmo dia... por exemplo o de roubares um pepino. Mas ainda bem, Zé, que o roubaste. Rouba mais... e leva-me contigo!... Fingiu a tua Mãe, perante o espoliado proprietário daquela horta, que te dava um castigo... e tu apresentas-nos, como ninguém, de como as Mães gostam dos filhos: fingiu ela que te castigava, que te batia... e tu fingiste que choravas, numa cumplicidade que eu juro nunca mais terás conseguido com ninguém. Por isso elas são as nossas Mães e aquele indulto que te concedeu a Ti Teresa, todo compreensão e amor, traduz na justa medida de quanto é capaz uma Mãe. Tu sabes, Zé: irrepetível. Mas talvez esse exemplo da Ti Teresa te tenha inoculado esse condão de seres aquilo que és na hora de julgar os outros: tolerante, compreensivo. Também o era a tua Mãe: terna na hora de perdoar. Também o era a minha própria Mãe, soutocicense como ela.

Ah!, O livro! Contramão! Nós, os outros, é que estamos em contramão, parece-me!

Mas o Zé faz-se um rapazola e o seu Pai sabe disso e chama-o de ajudante no campo... e começa também a ganhar a jorna... para a casa, pois os irmãos tinha emigrado.

Sentia-se pequeno “na aridez daqueles campos” da Curvachia... e é fácil, a quem como Raul Brandão “extrai ternura duma pedra”, é fácil, dizia, traduzir para o papel as percepções que vão acrescentando a sua vivência... algum silêncio e contemplação e os mistérios da religião tomam agora o lugar do irrequietismo de criança.  Esse silêncio é refúgio que nem a poesia interrompia. Sentia-se inadaptado o deslumbrado Zé, pelas pessoas e receia não poder vir a ser como elas. Tempos de ânsia, de hesitações... E num pequeno capítulo fala-nos na novidade na aldeia sob a forma de luz eléctrica mas também da sua fase mais mística – práticas, sonhos...

Eu não sou literata, mas sou atrevido e ouso aqui identificar uma característica desta autobiografia: a descrição surge-nos despida, confessionalmente desabrida e sempre emotiva e... onde repousas tu de vez em quando? Nos textos com que nos descreves pessoas, o lugar e as casas: textos que são contemplações risonhas e tolerantes sobre o menino que tu foste; juízos de atitudes só isentas porque distanciados no tempo; mas sempre com muita poesia ou prosa poética... aquela que te corre nas veias. São assim os textos da casa, do sonho com o sol e o da subsistência.

Mas permito-me enfatizar o texto do corte do mato, que nos ensina quanto naquele tempo valia uma ordem dum Pai. Era um ensinamento e um caminho aberto para os bons resultados. Mas... vamos ao mato, com o Zé!:

- levanta-te, são horas!

Puxou da camisa já transpirada de outros dias, vestiu as calças que cheiravam a pó...

Puxou as botas cardadas de debaixo da cama e calçou-as...

Olhou para os santos pendurados em quadros de parede, que pareciam olhar para ele...

- pega na enxada, no barril de água e vamos embora!

Colocou um casaco velho pelos ombros e partiram a caminho da serra...

Nada disseram um ao outro...

Estava escura a noite ele sentia medo das bruxas e dos lobisomens...

Por isso ainda seguia mais junto aos calcanhares do seu Pai...

Na subida da serra, o mato áspero ia-lhe batendo nas pernas... enquanto alguns tremoceiros que haviam sido ali semeados faziam barulho à sua passagem...

De vez em quando uma cotovia levantava voo debaixo dos seus pés

De repente um espesso nevoeiro invadiu a serra...

Começou a sentir a maresia a amaciar-lhe o rosto...

Alguns pingos caíam-lhe do nariz e das orelhas...

- como se não vê ainda bem, vamo-nos deitar um bocado até que comece a clarear...

Era o que ele queria ouvir...

Estendeu o velho casaco sobre os carrascos, arredou algumas pedras para que o não aleijassem nas costas...

Tapou o rosto com a ponta do mesmo e adormeceu logo de seguida...

- vamos que já se vê!

Ainda se não tinha levantado já o seu Pai ia batendo com a enxada contra o mato...

Nos seus tenros 16 anos, ia sentindo dificuldades em acompanhar o ritmo do seu Pai...

- vá... não pares, daqui a pouco vem para aí um calor dos diabos...

O sol começava a aparecer entre os ramos dos pinheiros...

O cabo da enxada fugia-lhe das mãos e o zé cuspia-lhes...

De repente viu surgir o vulto de sua Mãe ao longe...

Sentiu naquele momento uma mistura de alegria... e de amor...

A mãe chegava com o almoço e ele, querendo mostrar que era homem, nem parou logo!...

- vamos almoçar antes que arrefeça...

Sentou-se em cima do casaco que estendera, agarrou no tacho e na colher e comeu em poucos segundos as batatas com bacalhau...

- não bebas tanta água que ficas com o estômago pesado e daqui a pouco queres beber e não a tens... vamos empavear o mato...

Vamos... levanta-te... vamos, Zé... vamos... vamos... e foste... à serra cortar mato e... escrever das páginas mais humanas com que deparei na minha vida de leitor, também deslumbrado. Vamos ao mato, Zé! E leva-nos pelos caminhos dessa alma de sonhador, de poeta a quem puseram nas mão uma enxada e tu transformaste na pena subtil... na mais sublime relatora dum lugar e das suas gentes...

É o teu caminho atravessado por mais episódios, que os leitores, aqueles que não passaram histórias semelhantes aproveitarão em larga escala. Os outros, rememorarão e sentir-se-ão regressados prazenteiramente a esses tempos irrepetíveis.

Este livro! O livro! Uma autobiografia... talvez por isso não tenha prefácio, tão-pouco de dedicatória...

Atravessa-lo com fotografias e documentos também eles curiosos e já de per se, retratos de época.

É este livro também um fórum privilegiado teu, de agradecimento. A quem te fez bem. E tomamos nota da generosidade de algumas pessoas. Que te quiseram bem e te ajudaram.

A biblioteca Gulbenkian exerceu sobre ti decisivo fascínio e começou a moldar-te. Estou errado?

E vem o período africano da tua vida! É rico esse período do teu livro porque nunca deixas de ilustrar o ambiente, trazendo-nos as realidades da PIDE/DGS e a repressão, a precariedade dos teus tratamentos e que revelavam a consideração que o estado desse tempo tinha pelos melhores dos seus filhos...

A tua tropa em Angola teve um preâmbulo de peripécias onde pontificou mais uma vez a amizade... desta vez do João Ganchica. Que bom termos amigos... merecê-los!... Sabemos que, depois de Angola, das doenças, das injustiças, do afastamento, do tédio também experimentado, nessa colónia do teu desespero, vais fixar-te em Moçambique e arranjas emprego. Encontras uma comunidade de soutocicenses que apoias e onde és apoiado... e aparece em Moçambique, vinda de qualquer paraíso a tua futura mulher... casam em novembro de 1973, com uma adiada lua-de-mel e tudo!...

Nunca fala de namoradas e é compreensível: afinal a sua namorada (ainda se namoram!) iria ter com ele e ampará-lo, até... hoje. No livro não fala de namoros mas nós sabemos que é assim: guardado está o bocado...!... e é aqui que a vida e o livro e o Zé mudam de rumo. “Levantado da lama” é a tua mulher que te apoia no processo duro da descolonização que viveste e que contas com tanto pitoresco e tanta sinceridade! É a tua mulher que te ampara, no abandono que denuncias dos governantes portugueses e te dá força para regressar à terra. E te dá um filho primeiro e outro depois... é a tua mulher que te ampara até ao momento em que as nuvens te deixam finalmente um horizonte límpido, sopradas por algum vento de bem-aventurança. Quando, já em Portugal, na condição aviltante, também, de retornado, te sentias traído e maltratado, reentras na agricultura (1976/78) para a sobrevivência da família... e substituis-te à mãe dos teus filhos (também a tratar da subsistência). Substitui-la em aventuras, por exemplo, no dispensário.

Difícil é saber em que fase da descida da guilhotina passa um condenado a cadáver, mas em que fase da tua vida ela assume um definitivo rumo de paz e dias venturosos na humildade do trabalho, da família e dos amigos, essas tuas grandes opções, esse momento é o da chegada da carta da Escola Preparatória dos Marrazes, parece-me bem...

Chega uma carta para te apresentares na Escola. A partir daí, foi esperares que te reconhecessem as pessoas que iam sucessivamente dirigindo o teu trabalho. Tu tinhas tanto para dar e... não te deixavam. Aí o teu livro é omisso. Preferes a realidade de algumas insuficiências tuas ao desenrolar de páginas de auto-louvor egocêntrico e balofo. Preferiste ser simples e fraterno, e eu sou um privilegiado por ter estado em algum momento ligado umbilicalmente ao teu percurso literário. Ao compores um pequeno livro comigo, fui por uma vez na vida simples e fraterno. Obrigado, “ganda” Zé!

Mas as vicissitudes sofridas, a ansiedade, estavam para trás... agora era dar tempo ao tempo, tão somente. Desanuviar, cumprir as tarefas de que te incumbiam, partilhar generosamente as missões sociais que tomaste como tuas em tantas e tantas horas em prol da comunidade e das suas organizações. Mas, Zé... namoraste e amassaste os teus amados filhos e ainda te sobrou tempo para a tua querida filarmónica e para os versos. Ainda bem!

Este livro... pequeno, muito amor e candura quanto baste!...

Desempenhaste cargos sociais e preencheste empregos. Uns e outros com responsabilidade, empenho e amor à causa... às causas... mas continuaste fiel à tua amiga e confidente de sempre... a poesia.

Quando escreves:

nasci na cama

de ferros torcidos

cresci na lama

dos vencidos

nasci do álcool

amigo dos trapos

cresci descalço

vesti farrapos...

                                            ................... aí denuncias que o passado não te largava...

Pois é! Ao ver o teu livro, confiamos na justeza do teu julgamento desse teu passado. Esta poesia é também catártica. Ela é a vitória sobre esses tempos difíceis... vitória só possível pela homenagem que, orgulhoso, fazes aos teus Pais, aceitando os seus exemplos de sacrifício; vitória possível pela paixão pelos teus amigos e pela tua terra... que até possui uma fonte donde brotam água e mistérios... possível pelo empenho com que tudo cumpriste; pelo amor da tua namorada de sempre; vitória possível sobre esses tempos difíceis pela probidade do teu comportamento, que vigorará como exemplo cívico para todas as épocas e todos os lugares. A vitória que te permite hoje estares aqui com todos os que em ti se revêm e que te emulam. Invoco N. Camarneiro e deixo: “Uma história são pessoas num lugar por algum tempo”. Esta é mais uma história. Bonita, por tal sinal. O teu livro é muito bonito porque o é a tua vida. E porque escreves com amor pelos outros. Escreve outro de seguida, mas... não tenhas pressa: aprendi no outro dia que Da Vinci  cantava e acompanhava-se por uma lira que segurava na mão com que não pintava. Mas a Gioconda esteve na paleta desse mesmo Leonardo, nada menos que 6 anos... as obras que valem a pena são maturadas por um tempo de namoro, depois, pacientemente geradas e finalmente paridas... e com que dores!...

Mas escreve Zé, nós precisamos! Se tiveres esgrumeiros nas mãos, trata-os: a tua Mãe bem te ensinou que é com azeite da candeia (ou com teias de aranha, a aldeia está cheia delas...).

Soutocico, 29 de Janeiro de 2017

Mário Marques da Cruz