Por Carolina Morouço Gaspar

Leiria, 14 de Outubro de 2017

Quando eu nasci, Abril já era sinónimo de liberdade. Cada 24 de abril que vivi, já o vivi sabendo que no dia seguinte iria celebrar a liberdade. E, liberdade, é exatamente esta palavra que hoje aqui nos traz e que move o meu discurso. Há uns dias, estava eu a subir a Almirante Reis, em Lisboa, quando o Amílcar me telefonou a dizer que gostaria que eu dispensasse umas palavras para o dia de hoje e para este presente assente em abril que estas 205 páginas testemunham. “O 25 de abril foi o dia da liberdade, tens toda a liberdade para dizeres o que entenderes”, disse-me ele. Sorri para mim, e olhei à volta. Subia uma rua livre, cheia de gente livre, num país livre.  Mas, para mim, todas as ruas sempre deram ao lugar desejado, toda a gente sempre pôde seguir o caminho que quis e o país sempre foi livre.

No entanto, todos os anos há o mês de abril, e todos os meses de abril há um dia em que o meu pensamento são cravos e capitães e promessas de nunca mais e de para sempre. Lembro-me de ver desde sempre esse dia a vermelho e verde, com banda sonora de Zeca Afonso, de invocar gaivotas e papoilas e de sentir o meu peito inchado de orgulho por ser filha de uma nação que viu nascer homens que souberam arranjar armas para a defender, mas homens que das armas fizeram nascer flores e nascer com as flores uma nova nação.

Um desses homens foi o Amílcar Coelho, que foi quem fez nascer este livro de que hoje aqui falamos: “O 25 de abril, acontecimento, identidade, memória”. A ele agradeço o convite e o desafio que me lançou, foi muitíssimo gratificante. Felicito também todos os outros autores e todos os aqui presentes. 

Neste livro, há uma imagem que surge em primeiro plano, uma imagem que são quatro rostos e dez milhões surgindo em fundo. Nessa imagem está um soldado, o soldado Amílcar Coelho, aqui presente, que dividido entre a coragem e o medo escolheu a coragem, que entrega a sua vida a uma causa que entende como maior, e três crianças que assistem à História a ser feita, para quem as fronteiras da liberdade não eram claras ainda, assim como passava adiante a noção de que era a sua identidade, a memória que iriam construir futuramente, que estavam em jogo por meio daquele acontecimento. Acontecimento, identidade, memória. E estas três palavras acompanham-nos em cada página, assim como nos acompanham também o soldado e as crianças. Rostos de abril, mundos diferentes, sentimentos distintos no momento da Revolução, mas cujos destinos convergiam ali, naquele instante. E é disso que este livro trata. O 25 de abril toca-nos a todos, queiramos ou não, tenhamos ou não consciência disso. E com estes textos, brilhantemente divididos em quatro secções, o 25 de abril divide-se em passado, presente e futuro. Temos a possibilidade de desvendar os antecedentes da Revolução, de captar a escuridão de um povo cuja canção era reprimida, o antes do 25 de abril, e de ver a noite fazer-se dia, ver Portugal iluminar-se aos nossos olhos, com o acontecimento do 25 de abril, assim como surge também a questão do que é necessário fazer e como fazer para que essa luz nunca se apague, através dos temas e problemas do 25 de abril, bem como da memória viva da Revolução. São assim textos diferentes que se juntam, como nos devemos juntar todos nós. Cada um com a sua liberdade, até porque a liberdade é podermos ser diferentes. Cada um de modo diferente, como para o soldado e aquelas crianças foi a Revolução, mas fazendo de abril um dia de todos, um dia em que a liberdade venceu, a diferença uniu. São textos que nos permitem entender Abril, procurar Abril e, com tal, construir o nosso próprio 25 de abril.

E são doze 25 de abris que tenho em mãos, uns vividos e sentidos, uns de perto, outros à distância, uns aqui, outros do outro lado do mar, outros apenas imaginados. Passo agora a uma breve alusão a cada um deles.

Carlos Silva escreve o prefácio do livro, colocando-nos as questões que envolvem este grande acontecimento que, no texto seguinte, o Amílcar considera como “um acontecimento refrescante e entusiasmante que dá que pensar”. “Os sonhos iniciados nessa madrugada de abril de há quarenta e três anos estarão condenados ao sucesso ou ao fracasso? Estaremos nós, os portugueses, vitoriosos de tudo quanto se esperou sobre as portas que abril desejou abrir? Ou há ainda portas fechadas?”. São estas algumas das questões que, logo no ponto de partida, projetam o leitor para um espaço de reflexão e encontro com a realidade de abril. “E até que ponto esta realidade de abril pode conviver lado a lado com a atualidade e de que modo cada aniversário da Revolução deve ainda inscrever-se nas nossas vidas?”. Estas são também interrogações pelas quais este livro dá o seu nome, como nos explica Amílcar Coelho.

A estas questões, juntam-se algumas certezas vindas de um dos maiores pensadores da contemporaneidade relativamente à formação e aos manípulos da identidade. No seu texto, que constitui a transcrição de um discurso a que tive o privilégio de assistir, José Gil mostra-nos, como ele próprio diz, “o que representa para nós, hoje, mesmo com todas as dificuldades da nossa existência quotidiana, viver em liberdade”. E tenho de confessar que, após ter assistido ao discurso ao vivo, ter ouvido a sua gravação e ainda ter escrito sobre ele, ao vê-lo aqui, materializado no papel, claro e firme, pareceu-me ainda mais fantástico.

Chegamos, assim, à primeira secção do livro: antes do 25 de abril.

Pela mão de Isilda Silva e de Amílcar Coelho, a ideologia do Estado Novo é desconstruída e traduzida, sobretudo no que respeita à educação e à cruel analfabetização. Se queremos colocar-nos contra um regime autoritário, para percebermos onde erra e porque razão está errado, é fundamental entender as linhas por que se cose. E neste texto passa-se exatamente isso. São identificadas as estratégias discursivas e políticas de um governo déspota, para o qual as ferramentas da educação: a leitura, a escrita, entre outros, bem como a própria educação em si não eram instrumentos que existissem para originar pensamentos e pensadores livres, mas sim um meio de impor as ideologias opressoras do regime.

Completando este raciocínio, e trazendo-nos também para uma perspetiva mais autobiográfica, surge, de seguida, o texto de José Manuel Pereira da Silva. Podemos acompanhar a história de 36 meninos do 2º ano, como dizemos agora, à época 2º classe, do Professor Moreira, espelho de um povo, a infância do autor em Bissau e uma análise com evidente valor histórico aos anos pré-25 de abril em Portugal. Com agradáveis avanços e recuos temporais, revelações de futuro e resgates de passado, Pereira da Silva mostra-nos o que “andámos para aqui chegar”, uns descalços, outros com botas desajustadas como as do menino da ponta direita da fotografia da 2ª classe do Professor Moreira, caminhando numa realidade difícil e que o tempo não apagará. Como Pereira da Silva nos diz: “Sim, andámos muito para aqui chegarmos. Mas andámos…e chegámos sem que nada esteja completamente assegurado, e com muitos princípios por garantir ou cumprir”.

Por último na secção antes de Abril, Amílcar fala-nos dos mecanismos do Estado Novo e da História. História essa que, como nos explica, foi maleabilizada e explorada e adulterada a favor dos interesses do regime. Durante décadas, mentes brilhantes e cada português sofreram com formatações ideológicas e nacionalistas em prol de uma nação de poucos poderosos. Eu, pessoalmente, à medida que lia este texto, fui tomando conhecimento com uma realidade atroz que me incredulizou e que ainda foi capaz de me causar surpresa, pela negativa, e revolta. Quanto mais lia, mais compreendia a beleza e a brisa renovadora do 25 de abril. Como apela Amílcar, que “sobreviva serenamente o desafio irreverente do pensar polémico”.

Na segunda secção: o acontecimento do 25 de abril, somos confrontados com diversas perspetivas da Revolução. Umas de fazedores de História e outras de irmãos além-mar.

Gabriel Grabowski e Rodrigo Perla Martins juntam-se para elaborar um texto que nos fala, acima de tudo, de fraternidades lusófonas que a Revolução abriu e de ligações que se quebraram e uniram em nome dos interesses económicos e políticos, mas também em nome da independência das gentes e das nações que gritavam e se afirmavam. O 25 de abril não foi só Lisboa e Portugal. O 25 de Abril, como percebemos, atravessou o mar, atravessou continentes e com eles abriu portas que não mais se fecharam.

Amílcar Coelho, por outro lado, mostra-nos a Revolução dos Cravos ao vivo e a cores. Quando fala desse dia, Amílcar é-o naquele dia, naquele instante, naquela fotografia que o papel guarda. Só aí, abril existe para sempre. Independentemente dos caminhos que abril abriu, das vidas que depois de abril se fizeram, os Companheiros de Amílcar e Salgueiro Maia serão para sempre meninos-homens heróis. Se abril não foi abril em toda a sua plenitude, se a promessa e a utopia estão lá, ao longe, que os monumentos e as memórias existam para sempre e que a promessa espreite sempre para os meninos de antes, agora e depois.

Em terceiro lugar, surge a secção 25 de abril, temas e problemas. Olga Morouço e António Maduro, que certamente irão descrever a problemática atual da abordagem do tema 25 de abril na escola mais claramente do que eu, escrevem os textos “A escola e a memória do 25 de abril “ e “Ensinar e aprender Abril: uma tarefa de professores?”, respetivamente. Nesta parte ainda, temos o “Triálogo para uma espiritualidade política democrática e libertadora”, de Rui Grácio das Neves, que constitui um texto ficcional, que demonstra três personagens ficcionais que representam” posições históricas e epistemológicas próprias de três correntes importantes dentro da esquerda histórica: a social-democrata, o comunismo e o anarquismo.” Deixa, assim, o desafio aos leitores de reconhecer as figuras históricas concretas que as três personagens representam.

Por fim, a secção IV, A memória viva do 25 de abril.

O primeiro texto, que escrevi, permite-nos recordar futuramente, o acontecimento de um dia em que jovens puderam escutar Abril por meio de quem o fez, de quem o viveu, de quem o relatou e registou, imortalizando-o, e de quem ainda hoje luta por Abril e para que todos os abris, os de agora e os que aí vêm, existam sempre existindo liberdade.  Falo da sessão organizada pela delegação da UGT de Leiria, pelo Centro de Formação Leirimar e pela Câmara Municipal da Marinha Grande intitulada “Que sentido tem hoje a Revolução dos Cravos?”. Histórias cruzaram-se naquele dia. Histórias de há quarenta anos e vidas que nem metade somam ainda. Também Sequeira Mendes nos fala desta sessão, prosseguindo com uma alusão ao trabalho e atividade da UGT e do contexto sindical. Intimamente ligada ao 25 de abril e nele buscando forças, a UGT procurou e continua a procurar fazer viver abril, fazer abril ser vivido pelos mais jovens.

E falando da UGT e de jovens, pode falar-se de Carlos Moreira. Presidente da Comissão de Juventude da UGT, foi ele quem concluiu esta colectânea. Com um discurso de desafios e a esperança própria da sua juventude, Carlos Moreira apresenta-nos um abril de todos, os que o valorizam e os que não lhe garantem um lugar no presente. Afinal de contas, Abril é de direitos e de deveres, sonhos e vozes que lutaram. Abril deu-nos Liberdade.

Para concluir, para mim, falar de abril é falar de uma realidade que não vivi, mas da qual encontro ressonâncias em certas esquinas e vozes e lugares. Quarenta e três anos se passaram. Tão perto, tão longe, tão pouco, tanto. O que sei é que de lá até aqui, a vida foi correndo, e com ela as gentes, os governos. E a liberdade nunca nos foi garantida em lado algum. Sentimo-la umas vezes, outras parece querer fugir, mas poucas coisas são hoje um dado adquirido. Num presente em que vivemos, de extremos e impulsos, a cada momento é preciso agarrar a liberdade e lutar por ela a cada dia.

É importante recordar o 25 de abril, para que ele dure para sempre. É importante compreendê-lo, pois só com o antes podemos sentir a conquista da liberdade. E este livro ajuda-nos a consegui-lo. Muito obrigada a todos pela vossa atenção.

Carolina Morouço Gaspar