Alfredo Pinheiro MarquesA morte é, infelizmente, às vezes, a senhora dos navegantes. Dos homens, diz-se que “há os vivos, os mortos, e os que andam no Mar”. Se este dito popular for verdadeiro (e é…), difícil deve ser andar lá no Mar, alguma vez, muito tempo, em longas viagens (de que se espera voltar um dia), mas certamente muito mais difícil – mais heróico, mais duro, mais sobre-humano (quotidianamente heróico, duro e sobre-humano…) – deve ser andar lá sempre, dia após dia, todos os dias, durante a vida inteira. Cada dia, no intervalo das noites dormidas na praia, onde sempre ecoa, noite após noite, todas as noites, “a voz imensa, o lamento eterno…”. Viver, assim, é viver quotidianamente, dia após dia, entre o Mar e a vida.
Os pescadores do litoral português são os verdadeiros “heróis do mar” num país que, infelizmente, sempre mais e mais os foi esquecendo e desprezando, e sempre mais e mais os foi abandonando (na maior provação e pobreza), ao mesmo tempo que, nesse mesmo país, sempre mais e mais foram sendo oficiadas as bizantinas e académicas liturgias de “comemoração dos Descobrimentos” e de glorificação das míticas “grandezas imperiais do Passado” (grandezas que, na verdade, nunca existiram). Um país pobre (em que os pescadores sempre foram os mais pobres dos pobres) cujas elites sempre dissiparam improdutivamente a riqueza em celebrações sumptuárias e em retóricas bizantinas, e que, por isso mesmo, continuou tão pobre como sempre.
Um país em que, infelizmente, tudo o que autenticamente tem a ver com o Mar e com a Herança Marítima – e aí incluem-se sobretudo os barcos e os homens (a arquitectura naval tradicional e a experiência humana acumulada) – sempre foi sendo cada vez mais e mais abandonado, e assim votado à decadência, à extinção, à miséria e à emigração. E, no entanto, seria tão importante (e tão interessante) estudá-lo… desde Viana à Nazaré, desde Vila do Conde a Peniche, desde o Furadouro a Lavos, desde o Porto a Aveiro, desde Buarcos à Vieira, etc...
Devemos neste momento saudar a publicação de um novo livro – e, agora, um livro especialmente dedicado às matérias da História Marítima local – saído da pena do excelente investigador, competente, probo e honesto, que é Hermínio de Freitas Nunes. Esta é uma obra que, tal como as anteriores do mesmo Autor, fala por si mesma. Aqui fica agora bem patente uma rigorosa utilização da terminologia técnica adequada, um seguro domínio das fontes históricas, quer arquivísticas, quer narrativas, quer jornalísticas (fontes trabalhosamente compulsadas, seriadas e analisadas), bem como uma brilhante capacidade de síntese histórica (síntese breve, concisa, cronológica, compreensiva e problematizada). Neste mundo, as boas obras, na sua (aparente) simplicidade, falam sempre por si mesmas (e o inverso também é verdade). Muito além, e acima, de todos os pedantismos pseudo-intelectuais e de todos os folclores que aspirem ao academismo (e para isso usem palavras caras e conceitos abstractos).
Tomaram muitos centros de investigação académicos e universitários – e sobretudo no estado em que em Portugal infelizmente se encontram hoje em dia tantos Centros e Universidades… – contar entre os seus membros do corpo de docentes ou de investigadores alguém como o Autor deste livro… o mesmo Autor, de resto, que já antes havia produzido tantos e tão bons estudos de História Local, História Económica e Social, História das Ideias e Mentalidades acerca das regiões de Leiria e da Marinha Grande (acerca do seu património industrial e cultural, dos seus movimentos operários, das suas igrejas, etc.).
Especialistas e eruditos locais como Hermínio de Freitas Nunes, mais do que como discentes, são sobretudo necessários, como docentes ou investigadores, em quaisquer escolas que de facto queiram sair de si próprias e ser capazes de estudar algo mais do que o seu próprio umbigo (e é também isso que distingue as escolas).
Que pode haver, de resto, mais interessante do que a história de homens verdadeiros – homens corajosos – que é a história dos pescadores…?
Esta é uma investigação original, de arquivo, dedicada ao levantamento e publicação da documentação referente ao maior de todos os naufrágios da Praia da Vieira: o trágico episódio de 1907 que deixou no desamparo dezenas de famílias dos mais pobres pescadores locais. Agora, o Autor deste livro reuniu, e incluiu no seu anexo documental, a documentação apropriada, nomeadamente a correspondência e as contas, quer das receitas obtidas pela comissão presidida pelo diligente padre José Ferreira de Lacerda, quer das despesas efectuadas pelo mesmo pároco da Vieira que se notabilizou no esforço para ajudar as famílias dos náufragos. E esta parece ser, também, infelizmente, uma história muito portuguesa, quando se conclui que uma parte do subsídio enviado pelo governo de então parece nunca ter chegado a ser efectivamente entregue à comissão de socorro às famílias. E, quanto ao valor angariado pelo sarau de gala de solidariedade que também foi promovido, constata-se que quase metade de tal valor serviu para pagar as respectivas despesas de tal gala, incluindo comidas e garrafas de vinho fino.
Hermínio de Freitas Nunes quis agora dedicar as páginas deste seu livro àqueles que verdadeiramente as mereciam: os pobres mas valentes pescadores da Vieira, que a fome obrigou a ir ao mar em pleno Novembro, no dia 15 desse mês de Inverno…
Este livro é uma lição de História: por isso é tão inspirador, e tão emocionante. Fazemos votos de que a sua leitura, para os futuros leitores, seja tão motivadora quanto o foi agora para o signatário deste prefácio (o qual, de resto, desde há muito quer andar cada vez mais distante da História oficial e dos respectivos historiadores, e próximo dos pescadores).
É para isto que, na verdade, deve servir a História autêntica. Por isso, é não só um prazer, mas também uma honra, prefaciar uma obra como esta.
Hermínio de Freitas Nunes é um verdadeiro historiador que, agora, para além do estudo da tragédia de 1907, nos dá também o levantamento e a publicação dos documentos anteriores do Arquivo Distrital de Leiria e da Capitania da Nazaré referentes às companhas, aos barcos e aos pescadores da Vieira, com a reconstituição de tais companhas e dos homens que as integravam. A partir de agora, já lhes sabemos os nomes e a cor dos olhos. Ficámos, para sempre, a conhecer os barcos e os homens da Vieira ao longo do século XIX, desde as suas mais antigas referências.
Há alguns meses, durante as VI Jornadas Culturais da Gândara, na Praia de Mira, em Março de 2008 (onde a comunicação apresentada por Hermínio de Freitas Nunes já constituiu uma versão preliminar deste estudo, e foi uma das comunicações mais valiosas e apreciadas), o signatário deste prefácio, na sua própria comunicação, havia reiterado a sua expressão de que o Barco do Mar do litoral centro de Portugal é “o mais belo barco do Mundo”… (e, na mesma ocasião, o nosso Amigo Professor Fernando Alonso Romero, o druida da memória da Galiza, pela sua parte, chamou-lhe “a embarcação mais interessante da Europa”). Não são excessivas essas apreciações quando aplicados ao também chamado Saveiro, Varino, Barco da Arte, ou “Meia-Lua”, do Furadouro à Torreira, da Vagueira a Mira, de Lavos à Vieira. Agora, o competente investigador e erudito local que é o nosso Amigo Hermínio de Freitas Nunes adopta essa nossa designação de “o mais belo barco do Mundo”, nesta obra em que deixa para o Futuro uma investigação histórica criteriosa e um estudo fundamental, no que diz respeito à Praia da Vieira e aos litorais de Leiria, desse belo barco e dos homens corajosos que outrora o tripularam.
Esses homens do século XIX e dos inícios do século XX morreram (como todos os homens vão morrer um dia), e as suas casas e os seus barcos apodreceram ou arderam (como tudo vai apodrecer ou arder um dia). Mas lá continua, ao som da voz imensa, o barco descendente dos seus barcos… tripulado pelos descendentes desses mesmos homens…
Um historiador, agora – passados hoje cento e um anos… –, ajudou a que tudo isso sobreviva para o Futuro. É para isto que serve a História.

Alfredo Pinheiro Marques
Director do Centro de Estudos do Mar – CEMAR
4 de Abril de 2009